O FUTEBOL E O BARALHO*

ANTÔNIO GRAMSCI (1918)**

Os italianos não gostam muito do esporte. Os italianos preferem, ao esporte, o jogo de baralho. Ao ar aberto, preferem o espaço fechado de um botequim; ao movimento, a imobilidade em torno da mesa.

Observem uma partida de futebol: é um modelo da sociedade individualista. Nela se toma a iniciativa, mas essa é definida pela lei. As personalidades distinguem-se hierarquicamente, mas as distinções não ocorrem segundo o status, mas segundo as específicas capacidades de cada um. Há movimento, competição, luta, mas esses são regulados por uma lei não escrita que se chama “lealdade”, continuamente recordada pela presença do árbitro. Paisagem aberta, livre circulação de ar, pulmões sadios, músculos fortes, sempre voltados para a ação.

Um jogo de baralho. Espaço fechado, fumaça, luz artificial. Gritos, punhos na mesa e, com freqüência, na cara do adversário ou... do parceiro. Perverso trabalho do cérebro (!). Desconfiança recíproca. Diplomacia secreta. Cartas marcadas. Estratégia de chutes por baixo da mesa. Uma lei? Onde está a lei que se deve respeitar? Ela varia de lugar a lugar, tem diversas tradições, é ocasião permanente de contestações e litígios.

O jogo de baralho termina freqüentemente com um cadáver e algumas cabeças quebradas. Jamais se ouviu dizer que uma partida de futebol tivesse terminado assim.

Até mesmo nestas atividades marginais dos homens se reflete a estrutura econômico-política dos Estados. O esporte é atividade difundida nas sociedades onde o individualismo econômico do regime capitalista transformou os costumes e, ao lado da liberdade econômica e política, suscitou também a liberdade espiritual e a tolerância em face da oposição.

O jogo de baralho é o tipo de esporte próprio das sociedades atrasadas econômica, política e espiritualmente, onde a forma de convivência civil é caracterizada pelo informante da polícia, pelo policial à paisana, pela carta anônima, pelo culto da incompetência, pelo carreirismo (com os respectivos favores e benesses do deputado).

O esporte gera, mesmo em política, o conceito de “jogo leal”. O baralho produz os senhores que põem pela porta afora o operário que, na discussão livre, ousou contradizer suas opiniões.

* Tradução: Carlos Nelson Coutinho (dez.07)
** Texto não assinado, publicado em Avanti!, 26 ago. 1918, na coluna “Sotto la Mole”. Agora em Antonio Gramsci. Escritos políticos. Organização, introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, v. 1, p. 209.

Fonte: Gramsci e o Brasil

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